domingo, 11 de janeiro de 2015

Lições de Chefe Samoano

 Como pode o homem querer ser dono das montanhas, do sol, do ar, 
das aves, dos animais, dos mares e da vegetação? (foto Lucky de Oliveira) 


          O Papalagui (homem branco) pensa de modo estranho e muito confuso. Está sempre pensando de que maneira uma coisa pode lhe ser útil, de que forma lhe dá algum direito. Não pensa quase nunca em todos os homens, mas num só, que é ele mesmo.
          Quem diz: “Minha cabeça é minha, não é de mais ninguém”, está certo, está realmente certo, ninguém pode negar. Ninguém tem mais direito à sua própria mão do que aquele que tem a mão. Até aí dou razão ao Papalagui. Mas é que ele também diz: A palmeira é minha”, só porque ela está na frente de sua cabana. É como se ele próprio tivesse mandado a palmeira crescer. Mas a palmeira nunca é dele: nunca. A palmeira é a mão que Deus nos estende de sob a terra. Deus tem muitas mãos, muitas mesmo. Toda árvore, toda flor, toda grama, o mar, o céu, as nuvens que o cobrem, tudo isso sãos de Deus. Podemos pegá-las e nos alegrar, mas não podemos dizer: “A mão de Deus é minha mão”. É o que, no entanto, diz o Papalagui.
           “Eau” em nossa língua quer dizer “meu" e também “teu”. É quase a mesma coisa. Mas na língua do Papalagui quase não existem palavras que signifiquem coisas mais diversas do que “meu” e “teu”. Meu é apenas, e nada mais, o que me pertence; teu é só, e nada mais, o que te pertence. É por isto que o Papalagui diz de tudo quanto existe por perto de sua cabana: “É meu”. Ninguém tem direito a essas coisas, senão ele. Se fores à terra do Papalagui e  vires, uma fruta, uma árvore, água, bosque, montinho de terra, hás de ver sempre perto alguém que diz: “Isto é meu! Não pegues no que é meu!”. Mas se pegares, te chamarão de gatuno, o que é uma vergonha muito grande, e só porque ousastes tocar num “meu” do teu próximo. Os amigos deles, os servos dos chefes mais importantes te põem correntes, te levam para o “fale pui pui” (prisão), e serás banido pela vida inteira. 
          Para ninguém pegar em coisas que o outro declarou como suas, determina-se com exatidão, por meio de leis, o que te pertence e o que não pertence a outra pessoa. E existem, na Europa, homens que mais não fazem do que impedir que estas leis sejam violadas, ou seja, impedir que se tire do Papalagui aquilo que pegou para si. Desta forma, o Papalagui quer dar a impressão de que, realmente, garantiu um direito, como se fosse Deus quem lhe tivesse definitivamente cedido o que tem; como se, de fato, pertencesse a ele e não a Deus, a palmeira, a árvores, a flor, o mar, o céu com suas nuvens.
           Papalagui precisa fazer leis assim e precisa ter quem lhe guarde os muitos “meus” que tem, para que aqueles que não tem nenhum ou tem pouco “meu” nada lhe tirem do seu “meu”. De fato, enquanto há muitos pegando muitas coisas para si, há também muitos que nada tem nas mãos. Nem todos sabem os segredos, os sinais misteriosos com os quais se consegue ter muitas coisas; é necessário que se tenha uma coragem especial, quem sempre se concilia com o que chamamos “honra”. Até pode ser que aqueles que pouco tem nas mãos (porque não querem ofender a Deus, por que não tiram nada) sejam os melhores de todos os Papalagui. Mas são poucos, certamente. Quase todos furtam de Deus sem sentir vergonha. Nem sabem fazer outra coisa. Nem sabem,muitas vezes, que estão fazendo mal porque todos fazem a mesma coisa, e nem pensam nisso. E nem se envergonham.       
          Há uns que recebem o seu “meu” (e é muito) das mãos do pai, no momento que nascem. Em todo caso Deus quase nada mais tem, os homens lhe tiraram quase tudo, tudo transformaram em “meu” e “teu”. Deus já não pode repartir igualmente a todos o seu Sol, que feito para todos, porque hás uns que dele gozam mais que os outros...( ) 
          Se pensasse direito, o Papalagui saberia que coisa alguma que não sejamos capazes de segurar nos pertence; saberia que, no fundo nada há que possamos segurar. E também veria que se Deus nos deu a sua grande casa é para que todos nela encontrassem lugar e alegria. E ela é bastante grande, tem para todos um lugarzinho claro, uma alegriazinha; para todos existe certamente onde ficar debaixo da palmeira, um lugar onde colocar os pés, onde parar. Como é que Deus havia de esquecer um dos seus filhos! E, no entanto, há tantos que procuram um lugarzinho que Deus lhe destinou! 
         O Papalagui não ouve o mandamento de Deus e se dá o direito de fazer suas próprias leis; por isto é que Deus lhe manda muitos inimigos da propriedade. Manda-lhe a umidade e o calor para destruir o seu “meu”, manda-lhe a velhice, deixa que ele se desfaça, que apodreça. E mais ainda: dá o fogo e à tempestade o poder de destruir-lhe os tesouros. Principalmente, no entanto, põe-lhe na alma o medo, medo de perder aquilo que se apossou. O sono do Papalagui nunca é de fato profundo: precisa estar sempre de vigília para que não lhe seja tirado, de noite, o que juntou durante o dia. O Papalagui precisa estar sempre com as mãos e o pensamento segurando o que é “meu”. E como o “meu” o atormenta, sem parar, escarnecendo-o e dizendo-lhe: “Já que tiraste de Deus, castigo-te, mando-te todos os sofrimentos”! 
           Mas castigo muito pior do que o medo Deus impôs ao Papalagui. Impôs-lhe a luta entre os que só tem um pequeno “meu” ou nenhum, e os que se apossaram de um grande “meu”. É luta acesa, dura, que persiste dia e noite; luta que todos tem que aturar, que a todos corrói a alegria de viver. Os que tem são obrigados a dar, mas coisa alguma dão; os que nada tem querem ter, mas coisa alguma ganham. Também estes são raramente animados pelo zelo divino: e que chegaram cedo ou tarde demais para roubar, ou foram por demais inábeis, ou não tiveram oportunidade. São pouquíssimos os que pensam que Deus é quem foi roubado. E é raro ouvirem a voz do homem justo, que manda devolver tudo a Deus... 
           Ó irmãos, que é que pensais do homem cuja cabana é tão grande que dá para uma aldeia inteira e que não oferece ao viajante seu teto por uma noite? Que é que pensais do homem que tem um cacho de banana nãos mãos e não dá uma fruta a quem, faminto, lhe pede? Vejo a zanga nos vossos olhos, o maior desprezo nos vossos lábios. E vede, é isso que o Papalagui faz a todo o momento. E mesmo que tenha cem esteiras nenhuma dá ao que nenhuma tem. Pelo contrário, acusa-o e censura-o por não ter. Pode estar com a cabana cheia de mantimentos até o alto, muito mais que ele e sua família comem em 100 anos. Não sairá à procura dos que não tem o que comer, dos que estão pálidos de fome. E há muitos Papalaguis pálidos de fome...( ) 
           Mas o Papalagui não sabe que Deus lhe deu a palmeira, a banana, o “taro” (alimento) precioso, todas as aves do bosque, todos os peixes do mar, para todos nós usufruirmos e sermos felizes; para todos e não apenas uns poucos dentre nós, enquanto outros morrem de fome e passam dificuldades. Se Deus colocou muitos bens na mão de um homem foi para que repartisse com seu irmão; senão a fruta apodrece em sua mão. Deus estende a todos os homens as muitas mãos que tem e não quer que uns tenham mais do que os outros; nem que alguns digam: “O sol é para mim; a sombra para ti”. O sol é para todos nós. Se tudo estiver na mão justa de Deus, não haverá luta, nem miséria. 
           O Papalagui, este astuto, quer nos convencer de que nada a Deus pertence; pertence a cada um aquilo que consiga segurar na mão. Tapemos os ouvidos a quem diz estas sandices e pratiquemos a boa sabedoria: “ A Deus tudo pertence”! 



(*) Este texto foi extraído do livro ‘O Palagui – Comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéis, nos mares do Sul” reunidos pelo alemão Erich Scheurmann e transformado num pequeno e maravilhoso livro e publicado no Brasil pela editora Marco Zero. O modo de vida simples e desapegado deste povo, entretanto, está cada vez mais raro e mais difícil no Planeta em função do sistema capitalista, que só entende a linguagem do “meu” e do “teu”, nunca o “nosso”. Essa sabedoria samoana, presente em diversas culturas autóctenes, também está contida em todos os textos sagrados de que se tem notícia e é uma das máxima do Grande Mestre, Jesus: “Amai a Deus sobre todas as coisas, amai a si mesmo e ao próximo!”.

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